sábado, 26 de novembro de 2016

“O «Triângulo das Bermudas» no ‘novíssimo’ contencioso administrativo”



“O «Triângulo das Bermudas» no ‘novíssimo’ contencioso administrativo”[1]

            I. Introdução
 
Em 2006, por ocasião do centenário do nascimento de Marcello Caetano, escreveu TIAGO ANTUNES o artigo “O «Triângulo das Bermudas» no novo contencioso administrativo”, onde tecia considerações todas as sobreposições, grey areas e ‘buracos negros’ que surgiam da tentativa de articulação de três mecanismos ‘cautelares’ específicos: o decretamento provisório de providências cautelares (art. 131.º do CPTA), a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (art. 109.º e ss. do CPTA) e a decisão da causa principal a partir do processo cautelar (art. 121.º do CPTA).
            Porém, como sabemos, este ‘novo’ contencioso administrativo sofreu uma evolução pelas alterações de 2015 ao CPTA e os referidos mecanismos não foram alheios a estas mudanças, pelo que nem todas as críticas feitas pelo autor se encontram actuais. Ora, vejamos. 

            II. Processos Cautelares no Geral

            Aos processos cautelares correspondem os arts. 112.º a 134.º do CPTA. Eles visam, principalmente, acautelar o efeito útil do processo declarativo, isto é, evitar que na sua pendência se constituam situações irreversíveis e/ou danos de tal forma gravosos que retirem utilidade à decisão que se procura obter naquele processo. Por isso se diz que os processos cautelares são instrumentais do processo declarativo[2]. Eles não possuem qualquer autonomia, apenas existem ao serviço do respectivo processo declarativo[3].
Acresce ainda que as providências cautelares, depois de interpostas, podem ser mantidas, revogadas, alteradas ou substituídas. A solução do tribunal quanto à providência pode assegurar, a título provisório, a decisão a ser proferida no processo principal. Não pode, no entanto, vir constituir situações que depois não possam ser alteradas, isto é, a título definitivo.
Tendo em conta que o seu principal objectivo é obviar ao periculum in mora, a sumariedade como característica é igualmente relevante, uma vez que a tutela pretendida só será assegurada se for possível ao tribunal agir no chamado tempo útil.
Analisemos agora os três referidos mecanismos. 

III. O decretamento provisório de providências cautelares (art. 131.º CPTA)

            O decretamento provisório de providências cautelares constitui um incidente do processo previsto no art. 131.º do CPTA e consiste no decretamento imediato de providências cautelares, obviando a toda e qualquer formalidade que as devessem anteceder e que não se considerem estritamente necessárias. Trata-se de uma forma acrescida de acautelar o periculum in mora do próprio processo cautelar e que tem lugar em situações que requerem uma actuação praticamente instantânea. Note-se, porém, a evolução do contencioso: onde no art. 131.º do CPTA anterior a 2015 se pareciam entrever dois requisitos[4], hoje temos, claramente, apenas um - estarmos na presença de uma situação de manifesta e excepcional urgência, cuja consumação importe danos irreversíveis.
            Não estamos, assim, perante uma providência cautelar típica e nominada, mas sim perante uma intervenção jurisdicional, um incidente do processo cautelar com vista à sua máxima celeridade, por forma a evitar lesões irreversíveis, que possam ser afastadas através de soluções meramente temporárias.
            Veremos, ao longo deste texto, que, feita a delimitação das figuras, as áreas de suposta sobreposição entre os três mecanismos se reduzem significativamente.

            IV. Intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (arts. 109.º e ss CPTA)

            Trata-se de um processo principal, de modo algum dotado da dupla acessoriedade característica do decretamento provisório de providências cautelares. Isto é, apesar de coincidentemente urgente e assegurador de direitos, liberdades e garantias, o mecanismo da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não tem lugar e aplicação na dependência de um processo principal, nem lhe atribui uma solução provisória. O mecanismo em causa constitui um processo completamente autónomo, no qual o tribunal deve apreciar o fundo da causa e designar-lhe uma solução definitiva. Por isso se diz que não constitui um mecanismo cautelar[5].
            Levantaram-se, porém, questões quanto à sobreposição do âmbito de incidência destes dois mecanismos. Entendemos que a amplitude de situações que possam ser sujeitas à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é especialmente mais reduzida, versando apenas e especificamente sobre direitos, liberdade e garantias. Por sua vez, o decretamento provisório de providências cautelares adequa-se a qualquer necessidade digna decorrente da situação em juízo..
            Toda a discussão levantada a propósito deste mecanismo cautelar no artigo de TIAGO ANTUNES tem hoje, apenas aparentemente, menor utilidade. Na revisão do CPTA de 2015, veio o legislador tentar dar resposta a algumas das dúvidas e anseios da doutrina com o aditamento do art. 110.º-A. Este preceito vem, assim, tentar determinar a relação entre o decretamento provisório e a intimação. Relação essa que o autor entendia ser de subsidiariedade da intimação relativamente ao decretamento provisório de providências cautelares – nesse sentido, a parte final do n.º1 do art. 109.º do CPTA.
No entanto, de uma leitura conjugada dos n.ºs 1 e 2 do novo art. 110.º-A, a título principal parece funcionar, efectivamente, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Caso se “verifique que as circunstâncias do caso não são de molde a justificar o decretamento de uma intimação, por se bastarem com a adopção de uma providência cautelar”, é pedido ao autor, em despacho liminar, que substitua a petição por qualquer outra providência. Porém, pode o juiz considerar ainda que, estando verificadas as mesmas razões de urgência do art. 131.º, o meio mais indicado será o decretamento provisório de providências cautelares e, assim, deve decretá-lo, sem mais formalidades (mesmo que a petição consista numa intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias).
            Cabe então indagar: de que utilidade se reveste o art. 109.º? Dito de outra forma, em que situações não é possível recorrer à tutela cautelar mas, ainda assim, algo dita que actue o mecanismo da intimação? A pedra de toque está na tutela conferida a final e na sua irreversibilidade. Ou seja, essas situações seriam as que requerem uma solução imediata e urgente, porém, definitiva, sobre o mérito da causa (daí não se poderem subsumir à tutela cautelar, pela irreversibilidade da solução que necessitam).
Isto é, da revisão de 2015 do CPTA resultam exactamente os mesmos problemas que o autor levantou em 2006. 

IV. Decisão da causa principal a partir de um processo cautelar

O terceiro mecanismo em análise vem previsto no art. 121.º do CPTA. Também este sofreu algumas alterações em 2015. O legislador substituiu a expressão “natureza das questões” por “simplicidade do caso”. Consideramos que andou bem neste sentido, evitando que o intérprete considerasse que operava uma redundância relativamente à “urgência na resolução” (expressão esta que o legislador manteve). Mais ainda, o autor do artigo em ‘análise’ fazia uma conexão entre a expressão substituída (“natureza das questões”) e o tipo de tutela (provisória ou definitiva) requerida pelo caso concreto. A revisão do art. 121.º mostra-nos que essa não era, nem é, a vontade interpretativa do legislador. É, sim, uma questão de conseguir, pelos elementos trazidos à colação e pela simplicidade e clareza do caso concreto, tomar uma decisão sobre o mérito da causa. À parte desta clarificação, nada mais foi acrescentado pelo legislador num esforço de delimitação das figuras.
Este mecanismo nasce a partir de um processo cautelar, convolando-se depois num processo de tutela definitiva sumário.
Do preceito resulta ainda que o objectivo prosseguido pelo art. 121.º do CPTA é acolher as situações que careçam de uma decisão imediata do fundo da causa. Portanto, exactamente o mesmo objectivo que o prosseguido pela intimação. Dito isto, como articular dois mecanismos processuais que, apesar da intervenção do legislador, ainda não se encontram suficientemente distrinçados?
Facilmente reparamos que o âmbito de aplicação dos mecanismos não é exactamente coincidente. Isto é, enquanto a intimação versa apenas sobre direitos, liberdades e garantias determinados, a decisão imediata da causa principal pode abranger toda e qualquer solução que encontre protecção num processo cautelar.
A dúvida subsiste quanto ao particular que pretenda beneficiar de um mecanismo processual urgente com vista à protecção de direitos, liberdades e garantias. Deverá este fazer uso da intimação ou da decisão imediata sobre o fundo da causa?
Esta foi a questão colocada por TIAGO ANTUNES. Porém, pedir a decisão imediata do fundo da causa não é uma decisão do requerente, mas sim do juiz. Desta forma, e do que (não) dispõe o CPTA relativamente a esta matéria, com pouca dificuldade afastamos o entendimento de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, que pugna pela residualidade deste terceiro mecanismo face à intimação[6].
É nosso entendimento, construído na lógica e no seguimento do expresso por TIAGO ANTUNES no artigo em análise que, se for da compreensão do requerente que a situação em juízo é absolutamente clara, isto é, não dotada de especial complexidade ou controvérsia, aquele deve recorrer à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Por outro lado, se a situação for de extrema obscuridade, deve o requerente socorrer-se de uma qualquer providência que julgue adequada, deixando ao juiz a decisão de aplicar o art. 121.º do CPTA, ou qualquer outra forma de tutela cautelar, não desperdiçando assim qualquer alternativa que possa surgir pela iniciativa do juiz, tornando-se, assim, garantido, que a situação em juízo será acautelada. O que não aconteceria se, sem certezas absolutas sobre a “simplicidade do caso”, resultaria do facto de o requerente decidir fazer uso da intimação.
A solução coincide com a de TIAGO ANTUNES, porém diferem os fundamentos apresentados, muito por força das revisões operadas em 2015 ao CPTA.




[1] Referência ao artigo “O «Triângulo das Bermudas» no novo contencioso administrativo” in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, TIAGO ANTUNES.
[2] AROSO DE ALMEIDA, Mário; “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2.ª Edição, 2016, págs. 415 e ss.
[3] Refira-se, porém, a excepção da providência cautelar preliminar do art. 113.º do CPTA, assim como a sua característica distintiva: a caducidade.
[4] Neste sentido, LOPES DE SOUSA, Jorge Manuel in “Notas práticas sobre o decretamento provisório de providências cautelares”.
[5] AROSO DE ALMEIDA, Mário e CADILHA, Carlos Alberto in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 3.ª Edição, 2010; pág. 720.
[6] O autor fundamenta este entendimento considerando que apenas as situações jurídicas carecidas de tutela urgente e previstas no Título “Direitos, Liberdades e Garantias” da CRP (ou natureza análoga a estas) podem ser tuteladas ao abrigo do art. 109.º do CPTA, excluindo assim estas matérias da tutela conferida pelo art. 121.º do CPTA.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Sentença da Simulação

Acórdão do Processo 0405/2015

Tribunal Administrativo de Círculo de Capital

Processo nº0405/2015
Capital, 20 de Dezembro de 2015


Saneamento processual

- O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território (arts. 13º e 16 Código de Processo dos Tribunais Administrativos – CPTA);
- As partes são dotadas de capacidade e de personalidade judiciária (art. 8º-A CPTA), são legítimas (arts. 73º nº1 e 10º nºs1 e 2 CPTA) e estão devidamente representadas (art. 11º CPTA);
- Os contrainteressados, por sua vez, foram devidamente identificados e demandados ao abrigo das seguintes disposições: arts 10º nº1 in fine e 83º nº1 CPTA;
-Não existem validades que invalidem o processo;
- Não procede a excepção dilatória alegada pelos reús por se considerar que o despacho em causa se consubstancia num regulamento por ter carácter geral e abstracto, não procedendo o argumento de determinação invocado, nos termos do artigo 135º do Código de Procedimento Administrativo.

Matéria de facto apurada

- Não foi dado como provada a alegada corrupção entre o Presidente da Câmara e o Presidente da Associação de Taxistas.
- Não foram dadas como provadas as alegações relativas aos prejuízos que os autores – Associação de Empresários Tuk Tuk – pretendem ver indemnizados.
- Não foi dado como provado que os tuk tuks perturbam o trânsito e o estacionamento.
- Não foi dado como provado que os tuk tuks perturbem mais do que os automóveis, dado que a maioria das testemunhas não precisou os veículos de onde provinham as buzinadelas, principal causa de ruído, tendo porém ficado provado que as buzinadelas têm mais intensidade no período do dia em que tal ruído é permitido.
- Foi dado como provado que os tuk tuks aumentam o movimento e a azáfama nos bairros históricos, o que por um lado perturba o sossego dos moradores, nomeadamente o seu direito ao repouso, e por outro contribui para o desenvolvimento do comércio local e para o combate à exclusão da população mais idosa, alterando assim os hábitos locais que são sempre necessários para a evolução da sociedade.

Fundamentação de Direito

- Foi dado como provado pelo tribunal que o despacho emitido pelo Presidente da Câmara da Capital, Joaquim Substituto, é um regulamento administrativo, como alegam os AA., e não um acto administrativo. Como refere DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, Volume II), estamos na presença de um regulamento administrativo, caso estejamos perante normas jurídicas. Para tal, exige-se as características da generalidade e abstracção. A primeira existe quando «o comando regulamentar se aplica a uma pluralidade de destinatários, definidos através de conceitos ou categorias universais». A abstracção traduz-se «na circunstância de o comando regulamentar se aplicar a uma ou mais situações definidas pelos elementos típicos constantes na previsão normativa». Neste caso, ao contrário do que alegam os RR., estamos perante um regulamento, pois as categorias em que incide o regulamento estão definidas pelo despacho, pelo que são gerais uma vez que se aplicam a todos os condutores de triciclos e ciclomotores. Está, assim, preenchida a característica da generalidade, que, ao contrário do que os RR. sugerem, não se confunde com indeterminação dos sujeitos sobre o qual incide a norma, mas exigem, sim, que esta se aplique a todos os sujeitos e a todas as situações que ela visar.
- Estando perante um regulamento administrativo, a competência para a sua aprovação, à luz do artigo 33º, n.º1, alínea k) da Lei 75/2013, pertence à Câmara Municipal. Contudo, caso o regulamento tenha eficácia externa, a competência para a sua aprovação pertence à Assembleia Municipal, sob proposta da Câmara (artigo 25º, n.º1, alínea g) do referido diploma). Para DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, Volume II), os regulamentos são externos quando «produzem efeitos jurídicos em relação a outros sujeitos de direito diferentes, isto é, em relação a outras pessoas colectivas públicas ou em relação a particulares». Como nesta situação o regulamento incide sobre os particulares, considera o tribunal que há incompetência da Câmara Municipal para a aprovação do regulamento.
- Deu-se como provado que os condutores de tuk tuks não foram consultados em sede de Audiência Prévia, exigida pelo artigo 100º, n.º1 do CPA. Contudo, o tribunal admite a impossibilidade da realização da mesma, uma vez que o número de interessados é bastante elevado – que podem ir dos condutores de tuk tuks aos trabalhadores com eles concorrentes, dos empresários do ramo de actividade aos pequenos comerciantes que poderiam ver a sua actividade afectada, dos presidentes das juntas de freguesia envolvidas aos moradores. Assim, nos termos do artigo 100º, n.º3, alínea c) e do artigo 101º, n.º1 do CPA, era suficiente a consulta pública para recolha de sugestões, cuja publicação no Boletim Municipal e no site da CMC se dá como provado por este tribunal.

Decisão
- Quanto ao pedido de condenação de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, nos termos do 73º, n.º1 do CPTA, cumpre decidir pela procedência do mesmo, uma vez que o tribunal considera a Câmara Municipal incompetente para a aprovação do mesmo, pelo que padece de invalidade por violação de lei, ao abrigo do artigo 143º, n.º1 do CPA., sendo que a declaração de invalidade produz efeitos desde a data de emissão do regulamento nos termos do artigo 143º, n.º3 do CPA.
- É condenada a Administração ao restabelecimento da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado.
- Não foram dadas como provadas as alegações relativas aos prejuízos que os autores – Associação de Empresários Tuk Tuk – pretendem ver indemnizados, pelo que o seu pedido de indemnização não procede.



Os juízes de Direito
Ana Margarida Cantanhede Gonçalves
Ana Marta Camacho Limpo
Graça Patrícia da Silveira Silva
João Amorim Alves
João Diogo Pereira Tavares

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A Europeização do Contencioso Administrativo

Podemos, em primeiro lugar, identificar como causa da intensificação da europeização do contencioso administrativo a transformação do modelo de administração que, com o surgimento do estado social, multiplicou as suas funções. O crescimento, em dimensão e em importância, do papel da Administração Pública exigiu uma descentralização do poder executivo, através de uma autonomia administrativa sem precedentes. 

Por outro lado, a nível europeu, a sucessiva integração normativa e a correspondente aplicação do direito europeu ao Estados-Membros, por força do artigo 8.º, nº4 da Constituição da República Portuguesa originou uma função administrativa europeia, com vista à harmonia sistemática entre os ordenamentos jurídicos dos vários estados. Assim, podemos facilmente verificar que parte (ou grande parte) correspondem à prossecução de tarefas administrativas. 

Contudo, a influência do direito europeu no direito administrativo revelou-se não apenas a nível substantivo, mas também do ponto de vista processual. A título de exemplo, podemos identificar como comuns as seguintes regras:

i) Uma dimensão europeia do direito à tutela jurisdicional efectiva, pelo TJUE, ao pôr em causa o efeito preclusivo do direito de acção contra as autoridades públicas, quando exista incompatibilidade entre o direito europeu e o direito estadual;

ii) Consagração de um princípio de plenitude de competência do juiz nacional na qualidade de juiz comunitário;

iii) Regime jurídico de tutela cautelar europeia em matéria de contratos públicos, caracterizado pela plenitude dos poderes do juiz no julgamento das relações pré-contratuais;

iv) Regime da responsabilidade civil extra-contratual do Estado, de acordo com o princípio segundo o qual os Estados-Membros são obrigados a indemnizar os danos causados aos indivíduos pela violação do direito comunitário.

Em Portugal, vivia-se até 2004 uma situação de défice excessivo de constitucionalização e de europeização, pois tudo andava em redor do recurso de anulação, estando a tutela cautelar limitada à suspeição da eficácia, a qual raramente era concedida. 

Essa mudança só ocorreu em 2004, em que o modelo constitucional e europeu de um justiça administrativa plenamente jurisdicionalizada e destinada à protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares se concretizou no processo administrativo.

Concluímos, portanto, que, ainda que tardiamente, surgiu um contencioso administrativo europeu, de fonte legislativa ou jurisprudencial, que originou uma harmonia na criação e aplicação do direito a nível europeu.






João Diogo Pereira Tavares
Nº 21932

Processos Urgentes: os processos em massa e o contencioso dos procedimentos em massa.

O Contencioso Administrativo e Tributário após a sua reforma de 2015 adoptou uma configuração onde existem as Acções Administrativas - referente a acções administrativas principais não urgentes - e  no artigo 36.º do CPTA, os processos urgentes. Têm carácter urgente os processos relativos ao contencioso eleitoral; procedimentos de massa; contencioso pré-contratual; intimação para prestação de informações; consulta de documentos ou passagem de certidões; e ainda, intimação para defesa de direitos liberdades e garantias, a par das providências cautelares.

1. A reforma do CPTA introduziu um novo processo urgente, o contencioso dos procedimentos em massa. Contudo esta nova acção urgente difere dos processos em massa. Este post pretende de uma forma breve, analisar ambos no âmbito dos processos urgentes, mostrando as suas diferenças, e claro, a sua importância no âmbito do Contencioso Administrativo.

2. Processos em massa.
O artigo 48.º do CPTA institui um mecanismo de agilização processual de forma a evitar a sobrecarga dos tribunais administrativos, promovendo a uniformização da jurisprudência relativamente a processos previamente instaurados, que tenham por objecto litígios emergentes de decisões proferidas por uma mesma entidade administrativa que envolvem um grande número de interessados ou de processos.
Quando assistimos a um fenómeno de massificação processual relativamente à mesma relação jurídica material, ou embora estas sendo relações jurídicas coexistentes em paralelo estas seja susceptíveis  de ser decididas com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo, promove-se, com respeito pelo direito do contraditório, a realização de um único julgamento sobre todas as questões de facto e de direito envolvidas, onde intervêm todos os juízes do tribunal ou secção dando-se um andamento prioritário e urgente a apenas um dos processos. Sendo os demais processos suspensos.
Com o novo CPTA assistimos a uma redução para metade do número de processos susceptíveis de qualificação como processos em massa. Antes exigia-se que tivessem sido instaurados vinte processos, hoje em dia basta que sejam intentados mais de dez processos, conforme o artigo 48.º/1 do CPTA.

3. O contencioso de procedimentos de massa.
O contencioso urgente de procedimentos de massas visa assegurar a concentração num único processo, a correr num único tribunal, as múltiplas pretensões que os interessados em litígios emergentes de concursos de pessoal, procedimentos de realização de provas ou procedimentos de recrutamento.
Trata-se de um meio processual que não tem por objecto processos de massa já instaurados mas antes a concentração obrigatória num único processo dos processos a instaurar no estrito domínio do litígios respeitantes a procedimentos de massa, em domínios como os do concurso de recrutamento de dirigentes ou outros concursos de pessoal da Administração Pública e da realização de exames, com um número elevado de participantes.
O artigo 99.º do CPTA refere que o contencioso dos actos administrativos  praticados no âmbito de procedimentos de massa compreende as acções respeitantes à prática ou omissão de actos administrativos no âmbito de procedimentos com mais de 50 participantes nos domínios supra referidos.
O contencioso de procedimentos de massa é um mecanismo processual que visa evitar ab initio a instauração de diversos processos em diversos tribunais.
Após intentada a primeira acção abrangida pelo contencioso dos procedimentos de massas, fica vedada a admissibilidade de intentar uma acção separada que envolva a apreciação do mesmo acto jurídico ou de outros actos praticados no mesmo contexto. Os demais interessados terão de fazer valer as suas pretensões  no âmbito do primeiro processo que foi intentado. Sendo assim, e dado a natureza obrigatória da coligação e da apensação dos processos, mais o prazo para propositura de acção (um mês) e para a promoção de coligação (dez dias), impõem-se esforços redobrados aos interessados no sentido de verificar se foi promovida a respectiva publicação, sob pena de perder acesso à justiça administrativa. Contudo se se perder a oportunidade de participação directa no processo, será sempre possível utilizar o mecanismo de extensão de efeitos de sentenças, previsto no artigo 161.º do CPTA, uma vez que este regime está pensado para casos específicos, nomeadamente para situações em que existam vários casos idênticos no âmbito do empego público e em matéria de concurso.
O contencioso de procedimentos de massas apresenta um âmbito aplicativo  e um regime jurídico  diverso do processos em massa. Além da aplicação do regime comum dos processos urgentes, há uma redução nos prazos previstos no regime geral para a impugnação ou condenação à prática de actos administrativos em matéria de procedimentos de massa. O prazo de propositura das acções de impugnação ou condenação na prática de actos devidos é fixado o prazo de um mês, referindo-se tal prazo a actos anuláveis e nulos. Seguidamente a contestação recebe um prazo de 20 dias, estabelecendo-se de seguida um prazo de 15 dias para decisão do juiz ou do relator, ou para o despacho deste submeter o processo a julgamento (conforme o estabelecido no artigo 99.º/2 e 5 al. a, b e c) )

A instituição de processos urgentes constitui assim um postulado do princípio da efectividade da tutela jurisdicional sempre que se constate que determinadas situações carecem, umas por natureza outras por opção legislativa, de uma resolução urgente, que não se compadeça com as demoras do processo ordinário consubstanciado no novo CPTA como a Acção Administrativa.


Frederico Dias de Jesus, nº22085
Subturma 5; TD.