“O «Triângulo das Bermudas» no ‘novíssimo’
contencioso administrativo”[1]
I. Introdução
Em 2006, por ocasião do centenário do nascimento de Marcello Caetano,
escreveu TIAGO ANTUNES o artigo “O «Triângulo das Bermudas» no novo contencioso
administrativo”, onde tecia considerações todas as sobreposições, grey areas e ‘buracos negros’ que surgiam
da tentativa de articulação de três mecanismos ‘cautelares’ específicos: o
decretamento provisório de providências cautelares (art. 131.º do CPTA), a
intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (art. 109.º e
ss. do CPTA) e a decisão da causa principal a partir do processo cautelar (art.
121.º do CPTA).
Porém, como sabemos, este ‘novo’
contencioso administrativo sofreu uma evolução pelas alterações de 2015 ao CPTA
e os referidos mecanismos não foram alheios a estas mudanças, pelo que nem
todas as críticas feitas pelo autor se encontram actuais. Ora, vejamos.
II. Processos Cautelares no Geral
Aos processos cautelares
correspondem os arts. 112.º a 134.º do CPTA. Eles visam, principalmente,
acautelar o efeito útil do processo declarativo, isto é, evitar que na sua
pendência se constituam situações irreversíveis e/ou danos de tal forma
gravosos que retirem utilidade à decisão que se procura obter naquele processo.
Por isso se diz que os processos cautelares são instrumentais do processo
declarativo[2]. Eles
não possuem qualquer autonomia, apenas existem ao serviço do respectivo
processo declarativo[3].
Acresce ainda que as providências cautelares, depois de interpostas,
podem ser mantidas, revogadas, alteradas ou substituídas. A solução do tribunal
quanto à providência pode assegurar, a título provisório, a decisão a ser
proferida no processo principal. Não pode, no entanto, vir constituir situações
que depois não possam ser alteradas, isto é, a título definitivo.
Tendo em conta que o seu principal objectivo é obviar ao periculum in mora, a sumariedade como
característica é igualmente relevante, uma vez que a tutela pretendida só será
assegurada se for possível ao tribunal agir no chamado tempo útil.
Analisemos agora os três referidos mecanismos.
III. O decretamento provisório de providências cautelares (art. 131.º
CPTA)
O decretamento provisório de
providências cautelares constitui um incidente do processo previsto no art.
131.º do CPTA e consiste no decretamento imediato de providências cautelares,
obviando a toda e qualquer formalidade que as devessem anteceder e que não se
considerem estritamente necessárias. Trata-se de uma forma acrescida de
acautelar o periculum in mora do
próprio processo cautelar e que tem lugar em situações que requerem uma actuação
praticamente instantânea. Note-se, porém, a evolução do contencioso: onde no
art. 131.º do CPTA anterior a 2015 se pareciam entrever dois requisitos[4],
hoje temos, claramente, apenas um - estarmos na presença de uma situação de manifesta
e excepcional urgência, cuja consumação importe danos irreversíveis.
Não estamos, assim, perante uma
providência cautelar típica e nominada, mas sim perante uma intervenção
jurisdicional, um incidente do processo cautelar com vista à sua máxima celeridade,
por forma a evitar lesões irreversíveis, que possam ser afastadas através de
soluções meramente temporárias.
Veremos, ao longo deste texto, que,
feita a delimitação das figuras, as áreas de suposta sobreposição entre os três
mecanismos se reduzem significativamente.
IV. Intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias (arts. 109.º e ss CPTA)
Trata-se de um processo principal,
de modo algum dotado da dupla acessoriedade característica do decretamento
provisório de providências cautelares. Isto é, apesar de coincidentemente
urgente e assegurador de direitos, liberdades e garantias, o mecanismo da
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não tem lugar e
aplicação na dependência de um processo principal, nem lhe atribui uma solução
provisória. O mecanismo em causa constitui um processo completamente autónomo,
no qual o tribunal deve apreciar o fundo da causa e designar-lhe uma solução
definitiva. Por isso se diz que não constitui um mecanismo cautelar[5].
Levantaram-se, porém, questões quanto
à sobreposição do âmbito de incidência destes dois mecanismos. Entendemos que a
amplitude de situações que possam ser sujeitas à intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias é especialmente mais reduzida, versando apenas
e especificamente sobre direitos, liberdade e garantias. Por sua vez, o
decretamento provisório de providências cautelares adequa-se a qualquer
necessidade digna decorrente da situação em juízo..
Toda a discussão levantada a
propósito deste mecanismo cautelar no artigo de TIAGO ANTUNES tem hoje, apenas
aparentemente, menor utilidade. Na revisão do CPTA de 2015, veio o legislador tentar
dar resposta a algumas das dúvidas e anseios da doutrina com o aditamento do
art. 110.º-A. Este preceito vem, assim, tentar determinar a relação entre o
decretamento provisório e a intimação. Relação essa que o autor entendia ser de
subsidiariedade da intimação relativamente ao decretamento provisório de
providências cautelares – nesse sentido, a parte final do n.º1 do art. 109.º do
CPTA.
No entanto, de uma leitura conjugada dos n.ºs 1 e 2 do novo art. 110.º-A,
a título principal parece funcionar, efectivamente, a intimação para protecção
de direitos, liberdades e garantias. Caso se “verifique que as circunstâncias
do caso não são de molde a justificar o decretamento de uma intimação, por se
bastarem com a adopção de uma providência cautelar”, é pedido ao autor, em
despacho liminar, que substitua a petição por qualquer outra providência.
Porém, pode o juiz considerar ainda que, estando verificadas as mesmas razões
de urgência do art. 131.º, o meio mais indicado será o decretamento provisório
de providências cautelares e, assim, deve decretá-lo, sem mais formalidades (mesmo
que a petição consista numa intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias).
Cabe então indagar: de que utilidade
se reveste o art. 109.º? Dito de outra forma, em que situações não é possível
recorrer à tutela cautelar mas, ainda assim, algo dita que actue o mecanismo da
intimação? A pedra de toque está na tutela conferida a final e na sua
irreversibilidade. Ou seja, essas situações seriam as que requerem uma solução
imediata e urgente, porém, definitiva, sobre o mérito da causa (daí não se
poderem subsumir à tutela cautelar, pela irreversibilidade da solução que
necessitam).
Isto
é, da revisão de 2015 do CPTA resultam exactamente os mesmos problemas que o
autor levantou em 2006.
IV.
Decisão da causa principal a partir de um processo cautelar
O
terceiro mecanismo em análise vem previsto no art. 121.º do CPTA. Também este
sofreu algumas alterações em 2015. O legislador substituiu a expressão “natureza
das questões” por “simplicidade do caso”. Consideramos que andou bem neste
sentido, evitando que o intérprete considerasse que operava uma redundância
relativamente à “urgência na resolução” (expressão esta que o legislador
manteve). Mais ainda, o autor do artigo em ‘análise’ fazia uma conexão entre a
expressão substituída (“natureza das questões”) e o tipo de tutela (provisória
ou definitiva) requerida pelo caso concreto. A revisão do art. 121.º mostra-nos
que essa não era, nem é, a vontade interpretativa do legislador. É, sim, uma
questão de conseguir, pelos elementos trazidos à colação e pela simplicidade e
clareza do caso concreto, tomar uma decisão sobre o mérito da causa. À parte
desta clarificação, nada mais foi acrescentado pelo legislador num esforço de
delimitação das figuras.
Este
mecanismo nasce a partir de um processo cautelar, convolando-se depois num
processo de tutela definitiva sumário.
Do
preceito resulta ainda que o objectivo prosseguido pelo art. 121.º do CPTA é
acolher as situações que careçam de uma decisão imediata do fundo da causa.
Portanto, exactamente o mesmo objectivo que o prosseguido pela intimação. Dito
isto, como articular dois mecanismos processuais que, apesar da intervenção do
legislador, ainda não se encontram suficientemente distrinçados?
Facilmente
reparamos que o âmbito de aplicação dos mecanismos não é exactamente
coincidente. Isto é, enquanto a intimação versa apenas sobre direitos,
liberdades e garantias determinados, a decisão imediata da causa principal pode
abranger toda e qualquer solução que encontre protecção num processo cautelar.
A
dúvida subsiste quanto ao particular que pretenda beneficiar de um mecanismo
processual urgente com vista à protecção de direitos, liberdades e garantias.
Deverá este fazer uso da intimação ou da decisão imediata sobre o fundo da
causa?
Esta
foi a questão colocada por TIAGO ANTUNES. Porém, pedir a decisão imediata do
fundo da causa não é uma decisão do requerente, mas sim do juiz. Desta forma, e
do que (não) dispõe o CPTA relativamente a esta matéria, com pouca dificuldade
afastamos o entendimento de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, que pugna pela
residualidade deste terceiro mecanismo face à intimação[6].
É
nosso entendimento, construído na lógica e no seguimento do expresso por TIAGO
ANTUNES no artigo em análise que, se for da compreensão do requerente que a
situação em juízo é absolutamente clara, isto é, não dotada de especial
complexidade ou controvérsia, aquele deve recorrer à intimação para protecção
de direitos, liberdades e garantias. Por outro lado, se a situação for de
extrema obscuridade, deve o requerente socorrer-se de uma qualquer providência
que julgue adequada, deixando ao juiz a decisão de aplicar o art. 121.º do
CPTA, ou qualquer outra forma de tutela cautelar, não desperdiçando assim
qualquer alternativa que possa surgir pela iniciativa do juiz, tornando-se,
assim, garantido, que a situação em juízo será acautelada. O que não
aconteceria se, sem certezas absolutas sobre a “simplicidade do caso”,
resultaria do facto de o requerente decidir fazer uso da intimação.
A
solução coincide com a de TIAGO ANTUNES, porém diferem os fundamentos
apresentados, muito por força das revisões operadas em 2015 ao CPTA.
[1] Referência ao artigo “O «Triângulo
das Bermudas» no novo contencioso administrativo” in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, TIAGO
ANTUNES.
[2] AROSO DE ALMEIDA, Mário; “Manual
de Processo Administrativo”, Almedina, 2.ª Edição, 2016, págs. 415 e ss.
[3] Refira-se, porém, a excepção da
providência cautelar preliminar do art. 113.º do CPTA, assim como a sua
característica distintiva: a caducidade.
[4] Neste sentido, LOPES DE SOUSA,
Jorge Manuel in “Notas práticas sobre
o decretamento provisório de providências cautelares”.
[5] AROSO DE ALMEIDA, Mário e CADILHA,
Carlos Alberto in “Comentário ao
Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 3.ª Edição, 2010;
pág. 720.
[6] O autor fundamenta este
entendimento considerando que apenas as situações jurídicas carecidas de tutela
urgente e previstas no Título “Direitos, Liberdades e Garantias” da CRP (ou
natureza análoga a estas) podem ser tuteladas ao abrigo do art. 109.º do CPTA,
excluindo assim estas matérias da tutela conferida pelo art. 121.º do CPTA.